segunda-feira, 8 de novembro de 2010

você me faz parecer menos só

Quando você pinta tinta, dessa tela cinza
Quando você passa doce, dessa fruta passa
Quando você entra mãe-benta, amor aos pedaços
Quando você chega nega fulô
Boneca de piche
Flor de azeviche
Você me faz parecer menos só
Menos sozinho
Você me faz parecer menos pó
Menos pozinho

Quando você fala bala, no meu velho oeste
Quando você dança lança flecha, estilingue
Quando você olha molha meu olho que não crê
Quando você pousa mariposa morna, lisa
O sangue encharca a camisa
Você me faz parecer menos só
Menos sozinho
Você me faz parecer menos pó
Menos pozinho

Quando você diz, o que ninguém diz
Quando você quer, o que ninguém quis
Quando você ousa lousa pra que eu possa ser giz
Quando você arde, alardeia sua teia cheia de ardis
Quando você faz a minha carne triste, quase feliz.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Como Esquecer

Aqui Virginia se matou, murmuro. 
Antônia e eu estamos ante as águas verde-geladas do Ouse, o rio abstrato que finalmente se tornou real. Minhas palavras não dizem nada de novo, são para mim, tentando dar concretude ao fato de estar no cenário da tragédia que me acompanha há tanto tempo. O rio é pacífico ao atravessar a cidadezinha, e guarda em suas profundezas como um segredo de amor o dia em que Virginia Woolf vestiu sua roupa de algas e peixes. Faz frio em Lewes, e eu e Antônia estamos um pouco distantes uma da outra, silencio sas. Aparentemente dissociadas pela força do lugar. Como duas estranhas. Não nos entreolhamos sequer. Não é necessário.

Não era necessário. O que fazer com essa lembrança? Eu jamais deveria ter ido à Inglaterra com Antônia. Temos que ser avaros com as tessituras subjetivas porque delas dependem nosso oxigênio. O manual de sobrevivência na selva diz que certos lugares não devem ser compartilhados, pois se torna impossível resgatá-los depois sem contaminações. É um erro misturar os mitos pessoais com o ser amado. Mas sem dúvida é igualmente difícil viver tangido pela fatalidade futura, que ainda não existe. Que não é visível mesmo do mais alto pico de sua existência no momento. A caminho do trabalho, olho da janela do táxi a lagoa petrificada no gelo. Silhueta dos morros, céu e água me espiam cautelosos, perdidos em algum ponto de mim. Olho mas não a vejo. A irrealidade congela a paisagem. Mesmo as garças fitando imóveis o Sião parecem proibidas. À distância, os remos bri lham no ar e afundam-se na massa líquida sem um som. Onde foram parar meus suprimentos antiescuridão? 

Volto para casa e assim que abro a porta vejo Lisa no sofá, enrodilhada como um pano de chão fora de uso. Um pacote estaria mais inteiro. Com um monossílabo ela varre o meu cum­primento para longe, quer tudo menos conversa. Não vi quando chegou ontem – tarde, pois até meia-noite eu e Hugo ríamos na cozinha da novela onde ele fará o sórdido filho do fazendeiro. Tudo bem para mim, não sou a mãe de Lisa. Dividir a casa com outras pessoas pode nos dar certas alegrias, um conforto pelo calor de rebanho. Mas é também uma perturbação contí nua. Nada mais explosivo do que ter um ser humano por perto com suas emanações, seus medos, e desejos que nem sempre entendemos.

Depois de comer um sanduíche na cozinha, me enfio no quarto. Quero fugir do venenoso sofrimento que zumbe ali perto. É mais sábio ficar longe dos estilhaços dessa dor quando já tenho meus próprios enigmas para enfrentar. Mas a paz não é deste mundo. Mal o céu do computador se ilumina, a música invade o quarto como uma horda belicosa. Depois do incômodo inicial, decido firmemente que posso sublimar aquilo e engal finho-me com o cânone literário ocidental. Mas a banda, que não quer saber de sutilezas, escoiceia minha atenção desprote gida. Sou um rato afogado na música que vem da sala em ondas sucessivas. Estamos aí, gente boa, berra ela com a inconsciência jovem de quem só quer existir. Fecho os olhos e repito para mim mesma que o barulho é apenas um traço desse mundo ilusório. Não tem existência real. Um monge budista sequer o ouviria.

Volto a Haworth e ao ensaio sobre Emily Brontë com prazo para terminar: “...I am Heathcliff! He’s always in my mind: not as a pleasure, any more than I am always a pleasure to myself, but as my own being.” Releio a frase que ajudou a moldar o amor ocidental. Já escrevi boa quantidade de páginas sobre ela, mas minha atenção é agora uma paina soprada pelo vento. A tor rente musical entra por debaixo da porta como uma legião de demônios e só permite a existência de seus decibéis infernais. Minha concentração é dissolvida pelas guitarras da banda irlan desa. Resolvo meditar por alguns minutos: relaxamento e vazio interior me trarão serenidade, não é? Sem a sabedoria oriental não seríamos nada.

Por Myriam Campello, em Como Esquecer. Ed. 7 Letras.